sábado, 13 de dezembro de 2008

A Ternura de Quintino


Já era desses casamentos amarrados há tanto que não se perde tempo enfeitando mesa. Come-se à boca do fogão, panela quente, língua chamuscada pela pressa de engolir.
Marilene ainda nem tinha acabado de espremer o alho quando o marido escancara pela cozinha, os olhos saltados:
“A piada do escritório! Me explica uma coisa dessa, minha filha!”
“Que papel é esse, Geraldo?”
Era a deixa! Ele foi desdobrando a dita folha bem na cara da mulher, o suor correndo de tal forma que nem os pêlos eriçados da sobrancelha agüentavam.
“Hoje o pessoal da contabilidade entrou em um site para matar o tempo...”
“Ah, Geraldo tenha dó! No meio do refogado...”
“Marilene!” E, segurava a mão no peito, rouco. “Eu tenho nome a zelar, trabalho naquele lugar desde que o cometa Halley passou pela última vez na terra...”’
Ela desistiu e voltou a mexer a panela, depois do cometa já sabia o que viria. O namoro escondido do pai durante a campanha do Brizola para Presidente, militar desconfiado daquele lobo vermelho, guloso da virtude da filha. Três anos de esfregações sem ir às vias de fato. E Geraldo resistindo, cavaleiro de lança ardente... O que o amor não faz! Ou a teimosia!
Apoteótica noite dentro do carro.
Abarrotado de panfletos de FORA COLLOR! Marilene perdeu a virgindade em cima de três mil adesivos pedindo o impeachment do alto marajá da nação. Ainda escutava os sussurros de um Geraldo, incrédulo pela coragem da moça, talvez o fato inebriante, a comoção do país pelo bota fora do presidente, um clima de liberdade, tudo foi o estopim para Marilene baixar a guarda.
Sai ano, entra ano, filho vem, filho cresce, a paixão se acomoda.
Até o primeiro computador atravessar o portão da casa. E cada qual também se acomodou com as viagens cibernéticas, verdadeiros exploradores de terras selvagens. Marilene tinha sua horinha certa pela manhã, lia horóscopo, adicionava sites culinários, coisinhas de mulher. Quando resolveu pesquisar um prato diferente, desses para variar o rame rame diário,faria o marido babar pela “delícia de camarão da Neuza”. Descobriu espantada até onde uma simples delícia poderia levar...
“Desliga esse fogão! Marilene, você lembra o caso do Itamar e a modelo sem calcinha?”
“Ih... carnavais passados, Geraldo, o que isso tem a ver com essa folha? Olha, fala de uma vez que os meninos já devem estar chegando.”
“Marilene, eu sempre abominei mulher sem calcinha, pra quê deixar aquilo livre?” Continuava rosnando, ”e qual não foi a minha surpresa, hoje, ao ver uma foto sua, sem nada!”
Ela bambeou, mas falou firme:
“Brincadeira é essa? Passa essa foto pra cá!”
“Nem adianta negar, é você, ou melhor, é ela!”. E caiu na cadeira, as mãos alisando o cabelo ralo...
Marilene, nervosa, correu os olhos no papel, uma imensa foto, tudo bem aberto, livre, solto, e o pseudônimo “Ternura de Quintino” postado em garrafais cor de rosa.
“Imagina se eu tenho a coragem de me mostrar desse jeito tão... íntimo... além do mais aqui não tem cara, não tem nome, só a dita cuja, você garante mesmo que é a minha?”
“A pinta! Repara na pinta do ladinho esquerdo, aqui, ó...”
‘’Geraldo! Eu não sou a única mulher com pinta aí no... na...”
“Fala, na xoxota, cona, xereca, chana, perereca, piriquita, lascadinha, rolinha, cara-preta, mata-homem, fenda, chincha, crespa, gruta, boca-de-baixo, concha, ninho-de-piroca, aranha, bichana,fala Marilene! Fala de uma vez buceta, porra!
Dessa vez quem desabou na cadeira foi ela. De onde ele tirou tanto nome?Nem quando... Alías, Geraldo detestava baixaria e palavrão, talvez por isso tenha virado um chato, um come-dorme, uma sopa de moribundo, e Marilene encontra solitária a pimenteira vermelha e ardida, malagueta brava, selvagem, queimando seus caminhos esquecidos, acendendo a brasa de moça, ainda era moça, mas murcha,azeda...
“E tem mais,” continuava apoplético, ”Pode existir mil mulheres, mas com pinta marrom no formato do mapa da Itália e que mora em Quintino, ahhh... não deve ter duas frutas né?
“É... não tem jeito mesmo. Assumo. Mas a culpa é sua!”
“Minha filha...”, a voz abafada pela confissão, assim, tão fácil, sem muito choro, praticamente leviana de tanta sinceridade!
“O que eu fiz para merecer essa avacalhação? Se eu não soubesse fingir, o Almeida, o Gonçalves, o Neves e toda corja iriam perceber que eu não estava tão animadinho assim. O pior foi ter que agüentar os recadinhos que enviaram para a ternura...e todo mundo levando cópia,e o Amado,esse então foi o caldo entornado! O Amado! O homem teve o prazer de anunciar uma punheta de vinte e quatro horas! O Amado! Você sabe o que é isso Marilene? Um homem descarado batendo punheta na tua foto,Marilene! Você não sabe o quanto dói no coração...e a culpa é minha,Marilene? A culpa é minha?”
Se o diabo abrisse um buraco no meio daquela cozinha ela teria pulado e desaparecido satisfeita. Levantou-se e desamarrou o avental, decidida! Porque não adiantava se unir ou fugir do diabo. O sopro que vem quente varre a mentira, acaba com tudo.
“Olha Geraldo, a verdade é que eu sempre fui complexada. Então sem querer, descobri esse site onde as mulheres podem colocar fotos do que há de mais bonito nelas. Fiz. As primeiras saíram com as pernas fechadas, mas comecei a gostar, olhei tudo que a natureza me deu,perdi a vergonha, me senti diferente... E você sabe lá o que é perder a virgindade com a cara do Collor na bunda? E você sabe o que é agüentar as piadinhas do marido, ah, Marilene, se não fosse tão avantajada, ah, Marilene, podia ter um botãozinho menor..., cansei meu bem! Tô pedindo a conta! Muito prazer, greluda e gostosa!”
“Mas eu sempre gostei da tua xoxota!!!”
“O teu mal foi sempre dizer que adorava minha comida e nunca ter tempo para saborear...”
“Marilene, volta aqui, os meninos vão chegar, você nem acabou de fazer o almoço... vamos esquecer esse incidente, passar uma esponja...”
“Isso Geraldo! Aproveita que você já tem a esponja e acaba de lavar a louça, areia a panela, esfrega os vidros, e termina o refogado!”
Marilene foi para o quarto, pintou a boca de vermelho, desprendeu o cabelo e bateu a porta. Solta. Sem nada por baixo. Dentro da bolsa, no caderninho, o telefone do Amado.

7 comentários:

Gabriel Springer Pitanga disse...

Hahahahahhahahahahahahahahahhahahahahahahahhahaha!!!!!!!!
Muito bom!!!!! hahahahahha!
Muito bom, ótimo!!!
Ri o tempo todo!!
Demais!!!

Henrique Crespo disse...

esse eu conheço. muito bom.

Café no sangue cura. disse...

Bocetas tem mais nomes que o proprio Jesus. Isso é bom. Bocetas são mais atraentes. Sempre.

:)

LNabuco disse...

Gabriel!!

E olha que eu não acreditava na minha verve humorística!!!!

Beijos

LNabuco disse...

Rick...

Lembro bem...e lembro que vc me disse..."Por quê não faz um blog e publica os contos?"

A gente demora ,mas...

Beijocas.

LNabuco disse...

CaféNoSangue...

Adorei!

E imagine o cristão que não conhece os prazeres de uma linda boceta?

São tantas,diversas,raspadas,peludinhas,de cores variadas,perfumadas e quando encontram um homem que as ame...

Ai Jesus!!!

Laura Limp disse...

Minha querida,

Adorei teu conto, aliás, estou adorando tudo.
A maioria não conhecia ainda...
Você não para de me surpreender, moça!

Continuarei passeando por aqui.
E bom passeio é aquele mesmo inesperado, lugar onde a gente chega e quer ficar.

Muito bom, minha cara, muito bom!
beijos