terça-feira, 16 de dezembro de 2008

O Último Dia


De repente a alma se invade por qualquer tipo de lembrança... Até que acredita ser real os sonhos mentirosos que dançam em volta dos olhos.

Salustiano sempre foi ordeiro, correto no trabalho, funcionário dos correios há mais de anos, obediente em casa, dos seus a bem dizer era um capacho e daqueles bem grosseiros que os outros esfregam as solas com vontade...



Sua única transgressão era quando na feira ia atrás da mulher, levando o pesado, e furtivamente mergulhava as mãos nas sacas de feijão escondendo o punhado no bolso para em seguida com petelecos certeiros, mísseis vegetais, atingir os traseiros gordos daquelas pomposas.



Mas naquela sexta-feira, às portas do carnaval, ele voltava para casa mais encolhido do que de costume. Perdeu o emprego para aquele rapazinho, ele, Salustiano, que na sua bondade tinha inclusive ensinado o pulo-do- gato!



Solitário no meio daquela gente leve, que se espalhava cantando refrões de velhos sambas, ele retardava seu passo à medida que avistava o fúnebre portão descascado da casa em Madureira!

Dentro do bolso do paletó o envelope pardo que já tinha como destino as mãos ávidas de Ernestina.

E o que ela diria, quando soubesse que ele foi largado como uma meia puída? "Inútil, velho, acabado, não vale a manteiga que passa no pão!".

Nessa linha invisível do seu caminho ele previu a mudez que o sufocaria dali em diante, e lembrou-se de quando em criança desfolhava uma flor só lhe restava o malmequer...



Abatido e resignado, tateava parado à procura da chave, quando um calafrio eriçou os pêlos do braço.

Um assobio longo esquentou o sangue congelado de Salustiano, e um homem distinto, de terno claro e panamá muito aprumado faiscava em sua direção do outro lado da rua como se fosse a última árvore do paraíso, de frutos que se oferecem sem pudor.

Ele se viu tentado a fugir daquela vida oca.

Quando se deu conta já tinha entrado no ônibus que o levaria à Praça Onze tendo como companheiro o tal homem reluzente, sempre de longe, que alisava o bigode e lhe sorria cúmplice da grande travessura de Salustiano.



Começou com duas notas retiradas do envelope.

Gastou num boteco na Carioca, e em pouco tempo já havia se tornado amigo de fraldas do dono do estabelecimento e de quebra de todos os bebuns perdidos à procura de molhar as palavras...

Tudo de ruim desaparecia porque Salustiano voava longe, sem desejo de ser encontrado. Iria findar até o último tostão os míseros anos trabalhados no encantamento de um carnaval que pulsava estridente a lhe exigir toda vida que lhe fora negada.



E dentro dele um calor que não podia mais ser retido. Suas faces se avermelhavam porque lhe respigava entre odaliscas e colombinas tropicais o hálito da verdadeira alegria que não tem vergonha nem pede licença, que corre no riso frouxo e mesmo infantil e que premia com um beijo o folião desgarrado...



Sentiu-se importante pela primeira vez, legítimo homem, seu corpo tomou nova forma, como se tivesse ampliado para dar mais espaço a esse novo ar que de tão puro lhe entorpecia e bambeava as pernas e as fazia rítmicas, dançarinas, sonho das mulheres de sandálias douradas!



Não lutou mais contra a música, seguia e cantava naquele movimento frenético como se incorporasse as almas soltas dos sujos e esquecidos.

Sempre foi a ovelha gentil e recuada que se deixava tosar até descarnar a pele, com o prato de comida na mão esperando uma caridade e nunca chegava sua vez. Nos seus pesadelos jamais alcançava a mesa que medonha ia se distanciando e lhe pondo atrás, sempre atrás dos outros...



Quando chamou o menino de canelas finas que vendia as máscaras, chapéus, buzinas e confetes, ria por fora e por dentro naquele doido prazer de gastar o dinheiro em algo não atrelado à realidade.

Que somente é fantasia desmanchando ligeira como açúcar nas veias de Salustiano...

E seguia o cordão desabrochando pelas ruas em sonoras gargalhadas. "Esse carnaval eu atravesso sem dormir! Sem dormir!".

Vestiu-se de fogo decidido a cumprir a promessa e já era dono das rodas, abraçado às mulheres, requebrando-se nas ancas daquelas jóias preciosas. A batucada comia solta e Salustiano sem missão, sem pressa, fauno de pele curtida que exalava agora perfume de bem querer...



Mas no clarão da madrugada o dono da rua se fez visível aos olhos ardidos de Salustiano. E o dito brilhava sabedor da sua faceirice mulata, espanando o panamá com suas mãos longas...

Ao mesmo tempo em que gingava na direção do espantado homem paralisado e em duas piscadas sóbrio como um padre.

Que sustentou o olhar, não abaixou a cabeça. Não cedeu aquele medo perpétuo dos covardes. Não sorriu. Estava apenas em frangalhos, o corpo moído, e perdido no mundo. Súbito, porém, reconheceu o amigo.

A sombra dos seus sonhos que batia para fora do peito e Salustiano não poderia mais escondê-la.



No amanhecer azulado daquela quarta-feira morna, rodopiava em cores cintilantes e ferozes toda a beleza daqueles poucos dias chupados até a última gota que agora se desfaziam na alma de Salustiano.

Virado pelo avesso, inocente e enfeitiçado pela vida, lentamente por fim ele fechou os olhos sem deixar de sorrir...


Ilustração Seu Zé Pelintra

5 comentários:

Café no sangue cura. disse...

é revigorante, tudo que se passa por aqui. Horas sexo, outras reliquias. Faz bem :)

Sempre.

LNabuco disse...

É quando se deixa o medo de lado...

Beijos de cafeína pura!!!

Henrique Crespo disse...

Salustiano e seu carnaval me fizeram lembrar de um poema do Manuel Bandeira. Ela diz mais ou menos assim:

Sempre tristíssimas estas cantigas de carnaval
Paixão
Ciúme
Dor daquilo que não se pode dizer

Felizmente existe o álcool na vida
E nos três dias de carnaval éter de lança-perfume
Quem me dera ser como o rapaz desvairado!
O ano passado ele parava diante das mulheres bonitas
E gritava pedindo o esguicho de cloretilo:
- Na boca! Na boca!
Umas davam-lhe as costas com repugnância
Outras porém faziam-lhe a vontade.

Ainda existem mulheres bastante puras para fazer vontade aos viciados

Dorinha meu amor...
Se ela fosse bastante pura eu iria agora gritar-lhe como o outro: - Na boca! Na boca!

LNabuco disse...

Henrique...vc pegou certeiro!!!
Pegou no Bandeira...um dos meus favoritos de sempre...e olha que,menina,estudando em colégio de freiras (vc vê o que isso dá depois...)me fizeram decorar um poema enorme do Manuel...poderia ter ficado horripilada pelo resto da vida...Mas o encanto dele me conquistou definitivamente...E a verdade! E como é tocante essa fragilidade de folião desesperado,ovelha fugida...
Eu que sou um ser no fundo comovido pelas dores de amor me comovo com sua lembrança do Salustiano e Bandeira.
Obrigada!

Gabriel Springer Pitanga disse...

O Solene Sol das Três da Madrugada fica triste se não impedir alguém de ficar triste. "Ali há um recipiente para a loucura/bondade/alegria/leveza, ali cabe o que eu tenho de sobra. Toma, pega, leva, vai, que eu estou aqui de trás olhando contente você com sua nova alegria!"
E, arrumando o chapéu panamá e conferindo a gravata vermelha, ri como o gato da Alice: faz-se presente - mas onde ele está?