sábado, 29 de novembro de 2008

Sereia da Terra


Dor... Já nem sei quem sou
Azulejos frios, apagados
Dor de apenas uma cor
O tom azul infinito de um céu
Cortado em mosaico
Pedaços separados em diferentes barcos
Joguei-me ao mar
Joguei-me em seus braços
Frágil amparo
Ao longe eu não escutei o vento chamar
E a embarcação coroada de azulejos
Mais do que frios me observava
Afundar
Desprendiam da alma os meus sonhos
Que algum dia subirão à superfície
Doces e tranquilos
Como eterna espuma de criança...

Frida Khalo,Julien Levy,1938.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Menina no Portão


Se conhece pequena figura
Pintada de azul dependurada
À espera
Fria estrela de meninice esquecida
Dependurada
Envolta em manto pesado
Cujas mãos são apenas garras de velha águia
Retorna enfim à porta do ninho e o bico recurvado
Fere, castiga e maltrata os olhos
Puros de quem admirava
Distante estrela
A quem suspirava
Velha águia desfeita de seus adornos de ilusão
Recolhe esses encantos incompreensíveis
Dos que são inatingíveis
Bardos, profetas e poetas
Desajustados do amor
Esse manto de alegóricas tristezas
É o único refúgio
Estendido aos pés do meu passado
Águia dependurada
Sem asas
Sem bico
Fria
Distante
Sem nada

"Belle de Nuit" de Brassai.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Glória,o suor e o cachorro.

Garota agora é a hora,
Prende o cabelo nessa cordinha imunda
Dentro desse quartinho sujo e escuro.
Leva à boca antes de sair o suor preso na língua
Do rapaz ao teu lado.
Enxuga o sal do amor
Da noite
Amanhecida
Agitada.
Encosta teus dentes, oferece tua última mordida e o cheiro do teu cabelo escorrido.
Lá fora há uma estrada quente... E no fundo dessa bolsa de franja ainda sobraram alguns
Cigarros...
Um pente. Um espelho. Algum dinheiro.
O suficiente para um café.
Na grande e longa e estranha estrada quente ainda há o suficiente.
Suja. E o dia descobrindo tuas sardas, teus sapatos de couro desbotados.
O sol, inimigo da garota dos longos cabelos e olhos frágeis.
Ainda assim continua em tua visão do seu fogo,
Quer cegar. Perder. A estrada é longa
E o couro anda no cimento cinza. E o suor escorre desaparecendo a noite
Agitada
Esquecida, como esse cachorro descarnado
Famélico
Amanhecido ao teu lado, atrás dos teus sapatos
Vermelhos de couro desbotado.
Cachorro apagado.
Vontade de morder o animal. Garota que ri entre seus cabelos compridos cor de fuligem
Mostrando seus dentes. Acende mais um cigarro.
A fumaça. Sinal para o sol!
Talvez o rapaz a veja. Mas ele dorme, num quarto abandonado...
Longa viagem... E nenhum carro parando.
Garota e cachorro
Sedentos. Esfomeados.
Posto de gasolina. O velho olha.
Seu umbigo.
Amanhecido.
Se fosse uma selvagem arrancaria e comeria aqueles olhos
Estúpidos, inchados no tempo.
Comeria em grande mordida e o resto dos glóbulos
E o resto deixaria para o cachorro...
Colocou a bolsa na frente da barriga.
E o velho do posto adivinhava seu corpo.
Contava suas sardas. Ela o chamou.
Sem dinheiro.
E uma longa estrada. Abaixou sua calça e o devorou
Ali mesmo, no posto perto do banheiro
Sugou a pele envelhecida, observada pelo cão.
Estava de meias brancas e sua mãe fazia tranças em seus cabelos escorridos
Seu pai lhe beijava, segurava pela mão, dava bom dia e a garota
Do futuro de algodão, puro, com seus cadernos de letras e fadas
Ajoelhada estava
E tinha na boca o gosto
De gasolina...
Era o momento de acender o isqueiro
Mas suas mãos trabalhavam presas, tristes,
O cachorro se apiedava.
O sal do rapaz evaporava. De dentro de suas sardas.
O dinheiro do velho foi o almoço dos novos amigos.
Toda estrada é longa!
Aquela parecia não ter fim.
A raiva parecia não ter fim.
Cuspia a saliva de gasolina, cuspia no animal
Este não ameaçava.
Mataria por ela. E por seus sapatos pequenos e sem cor.
Guardou o troco, moedas, papel azedo, lambeu o dedo.
O dinheiro tem gosto azedo. Velho!
A estrada só tem ida.
E os carros passam rápido,
Cada vez
Misturados, em fumaça escura
Tarde demais...
Seus olhos fecharam na estrada
Onde os carros passaram em seu corpo frágil.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Vento Tardio


Caminho...vou indo...
Sem sentir os pés
No caminho
Folhas abrindo devagar
Caminho
Já estou indo...
Sonhos caindo
Pelo rosto
Do amor...

"Escrava", pintura de Luciana Nabuco

A Mosca

Pela fresta do meu quarto
Nesse dia amargo e azedo
Não consigo matar
A mosca que incomoda meu sono
A mosca que dança louca
E fala alto demais
Mosca absurda
Tua vida é curta... Me deixe em paz...
Quero virar e sonhar
Sem acordar...
Dormir sem sentir o prazer
Entorpecer
Porque bem longe no tempo vazio...
Das horas paradas nessa cama estreita...
Inseto suave,bandido...Você já me esqueceu

sábado, 22 de novembro de 2008

Carta de Clarice...na tarde transparente

Não existe mais ofensas.Sem precipícios.Não desejo ferir.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Carta de Clarice...

... De cima da minha montanha eu sou ainda essa águia observadora das dores dos homens... Acredito na sensualidade como expiação das nossas fraquezas,quando digo sobre a mentira é porque a imaginação feminina se nutre das palavras da boca de vocês,por mais ilusórias guardaremos feito jóias de onde poderemos sempre retirar e afirmar a doçura dos momentos que estão na verdade fadados ao abandono e fracasso. Mas um dia, uma noite houve um mistério, e isso preservamos como parte integrada aos nossos sonhos.

A outra parte é a carne. Já nem sei o que você pensa sobre mim, ou desses jogos maliciosos. Ou de uma correspondência eletrônica de alguém que deveria ser o mais sensato dessa amizade. Eu. Não a possuo. Imatura e talvez à beira de uma demência dos sentidos, eu gosto desse seu cheiro selvagem. Então se apodera uma verdadeira cegueira de onde enxergo uma boca, esses olhos que saltam na minha carne, o meu prazer interno como uma lava quente e pegajosa que transpira e chama pelo teu gozo, uma vontade louca, animalesca primária de dominação, então quem sou realmente? Uma inocente fingida ou essa fonte insaciável?

Sou solidão. Apenas tenho esse corpo frágil e sedento a oferecer, hoje me sinto como a mais verdadeira das prostitutas.

Você está se tornando um grande amigo, Devo engavetar aí.

Mas por enquanto ainda sou a Salomé na fúria da alucinação.

E tenho prazer em me queimar...

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

O Beijo de Eurídice Ou Pequeno Conto do Desencontro dos Amantes da Lira




Epílogo. 1946. Orfeu era um desses degas, malandros à custa da generosidade e solidão das putas da lapa, "já nasceu com sorte e desde pirralho vive à custa do baralho, nunca viu trabalho..."

Encanto das fêmeas fogosas, solução e amparo. Chegava aos castelos e alegremente era saudado pelas flores noturnas em seus vestidos acorrentados ao doce vício. Uma dessas noites esbarrou com um pracinha americano que veio parar nas costas pernambucanas e finda a guerra resolveu degustar as cabrochas do litoral até o sul do país... Entre um cigarro Olga e confissões trocadas, "I got a litlle story... we're drinkin'n my friend ... I'm fellin' so bad ... you'd never know it ,but buddy I'm a kind of poet.. So make it one for my baby and one more for the road..."

Orfeu entendeu o que até mesmo tentava esconder... Nos olhos fundos daquele homem ele mergulhou além da incompreensão da língua, o quanto nos falta um verdadeiro querer... Entrou pela noite com o desconhecido em gulosos goles de cerveja. Bambeando, cheirando à paixão ele colhe a flor mais pura da lapa... Mocinha Eurídice que fazia um bico de caixa em um cabaret dançante, orvalho selvagem, que paralisa a alma de Orfeu, corta o fôlego por alguns instantes até que ele consiga retomar o universo de grande macho sedutor, rei da lira e mulheres que seduz para em seguida desdenhar...

E com Eurídice não foi diferente... Passou-lhe a conversa ali mesmo no balcão em promessas de perfumes exóticos de lugares romanceados, folhetim barato da sua língua pobre e ardida... revirou aquele coração imaculado.Naquela manhã findo o trabalho, ela suspirava, "eu nasci pra sofrer... foi olhar pra você... quis gritar, quis fugir, mas você eu não sei por que você me chamou..."

Eurídice nem se importava com sua roupinha puída, seus sapatinhos gastos nas pedrinhas da Cinelândia, nos sonhos dispensados de suas horinhas de folga em filmes. Agora ela esperava, a noite e seu balcão, porque sabia que ele viria, e faria suspender as horas, parar o tempo durante o tempo em que olhasse em seus olhos, "ah,você está vendo só do jeito que eu fiquei... entre...não deixe o mundo mau lhe levar outra vez... me abrace simplesmente não fale,não lembre..."

Ela se entrega ao amor de Orfeu, durante aquela noite o viu dançar com tantas mulheres que quase nem acreditou que ao deixar seu trabalho, com o corpo cansado e os pés doloridos, se surpreenderia com a boca mais doce que provou... "Eu faço samba e amor até mais tarde e tenho muito sono de manhã..."

Ele jamais seria indivisível, entendeu na forma que calmamente Orfeu fazia o nó da gravata e lhe sorria já como se ela fosse uma lembrança distante... "Mesmo que os romances sejam falsos como o nosso, são bonitas, não importa são bonitas as canções..."

Eurídice abandonou seu emprego nesse dia. Desgostosa andou a vagar pela rua do Comércio, Buenos Aires, Praça Tiradentes, numa louca busca dos passos do seu dançarino... "Suas mãos,onde estão? Onde está o seu carinho,onde está você? Se eu pudesse buscar,se eu soubesse aonde está...seu amor...você..." .Por quantas mulheres ele havia passado? Em quais castelos ele estava? Quais camas e lençóis baratos ele dormia e acordava?

"As praias desertas continuam esperando por nós dois... a este encontro eu não devo faltar... agora eu sei que não posso faltar... porque tudo na vida há de ser sempre assim... tudo me diz não podes mais fingir..."

E assombrada, triste e esquecida em um desses dias que lentamente acabam ela se aproxima dessas mulheres de vermelho. Abre seu espelho e do fundo da bolsa retira o batom. Sua vaidade, o batom que estava à espera de Orfeu e agora marcará infinitos desconhecidos, vingança do abandono."Um dia há de chegar,quando ainda não sei...você vai procurar aonde eu estiver...". Decidiu esvaziar esse amor sendo de todos. Sendo de muitos. Desconsiderada e verdadeiramente honesta como toda puta.

E na ironia dessa história, ciranda de desespero, Eurídice nua nos braços do pracinha.Que não a deixa ir embora enternecendo um coração aprisionado e murmura enfeitiçado pela melancolia...

"Speak low... Darling, speak low... Love is a spark lost in the dark... the curtain descends, everything ends too soon... I wait... when you speak low to me... speak love to me..." Ela somente consegue fechar os olhos e imaginar que o calor que braseia seu corpo vem dos beijos de Orfeu... E aquelas palavras estrangeiras envenenam sua alma como o doce sussurrar do homem que a esqueceu.

Ela nem chega a perceber o quanto o pracinha se perdeu por ela. Já não queria mais ser a razão de ninguém, em cada esquina esperava encontrar Orfeu... Ele soube enfim, que ela era a puta mais concorrida da Gomes Freire, e lhe doeu e corroeu no orgulho porque suas promessas tinham sido verdadeiras.

Porém como todo homem ele as corrigiu pela manhã a deixando linda e petrificada flor estendida na cama, marcada pelas palavras."Ninguém precisa saber o que houve entre nós dois.." Ele era Orfeu, de todas as putas do mangue, jamais deixava seu amor na mesma cama duas vezes, sua avidez competia com dos outros malandros de branco e panamá, jamais iria existir outro amante da lira...

E num encontro fatídico, aquele que a vida lhe enchia todos os dias foi atingido pelo eterno looser, desajustado soldado. Nessa noite as rosas das encruzilhadas sangraram... O malandro não se desviou do seu destino, agonizante pediu por Eurídice, implorou um último beijo...

"Sim,deve haver o perdão para mim,senão nem sei qual será o meu fim...consegui o grande amor,mas eu não fui feliz..."

A busca chegava ao fim.

''Triste senhora... chora,disfarça e chora..o seu pranto vai molhar o deserto..." Ela retirou seu lenço, cobriu sua ferida em um gesto vazio, lentamente aproximou seu rosto. Orfeu das noites intermináveis, melódicas e sensuais, do mel derramado em sua boca inocente, homem dos cabelos de veludo, negros, escuros caminhos percorridos pelos seus dedos finos. Orfeu, doce Orfeu estendido em seus braços, que não dança mais...

E confessou que ele tinha conseguido com que ela desistisse de amar... Com os olhos fitos naquela que ele não teve coragem de se entregar, Orfeu libera sua alma ainda quente que se reparte nas encruzilhadas e no vagar da alma boêmia... Eurídice se levanta.Sem a esmola do beijo. Pede que acedam uma vela ao defunto e finge esquecer sua historia junto com o dia que sempre insiste em nascer...

"Morre mais um amor num coração vulgar deixa desilusão a quem não sabe amar... um verdadeiro amor nunca fenece... se o amor morrer é porque ninguém o entendeu ...deixa o teu coração viver em paz... o teu pecado é querer amar demais."


sábado, 1 de novembro de 2008

Os lábios frios de T.

Preciso de alguém mais forte do que eu.

A hora azulada quando a escuridão é rompida pelo dia reacende minhas marcas nesse banheiro de bar.Já não consigo sair.Sou a última mulher de todas que deixaram a seiva selvagem de sexo de suas urinas pelo vaso,pelo chão...

Sou sempre a última mulher,a que sobra e cheira o odor fétido do álcool transformado.Sou a boceta solitária e vadia que se vê nua num velho espelho...A maquiagem não disfarça nenhuma dor,não me torna alegre,nem sedutora.Já não tenho a cor de maçã perfumada e pura.

Serei recolhida como o resto desses papéis úmidos e sujos...

A noite inteira escutei sons confusos, estridentes,mistura de música e conversas vazias.Meus olhos mergulhados em T. são como satélites desgovernados,desorientados pela falta de paixão.Ele se conforta em mim quando não há mais ninguém,ele sabe o que pede minha boca.Ele preenche nela seus próprios vazios e encontra a calma e o prazer.

Apenas dessa vez eu serei todas elas.Trancada aqui me esfrego nas paredes,me contamino do que não sou.Elas me doam a compaixão de que necessito.Elas me dão seus amores,suas esperanças... Sinto o sonho no rastro da fêmea. Bruscamente um afago aquece minha nuca, você vê, eles deixam seus beijos...

Eles enlouquecem pelo meu cheiro mentiroso, a mulher que nunca é notada é a mulher adorada pela cegueira de todos os homens. Diversos tons de âmbar me colorem... Já não estou só.