quarta-feira, 5 de novembro de 2008

O Beijo de Eurídice Ou Pequeno Conto do Desencontro dos Amantes da Lira




Epílogo. 1946. Orfeu era um desses degas, malandros à custa da generosidade e solidão das putas da lapa, "já nasceu com sorte e desde pirralho vive à custa do baralho, nunca viu trabalho..."

Encanto das fêmeas fogosas, solução e amparo. Chegava aos castelos e alegremente era saudado pelas flores noturnas em seus vestidos acorrentados ao doce vício. Uma dessas noites esbarrou com um pracinha americano que veio parar nas costas pernambucanas e finda a guerra resolveu degustar as cabrochas do litoral até o sul do país... Entre um cigarro Olga e confissões trocadas, "I got a litlle story... we're drinkin'n my friend ... I'm fellin' so bad ... you'd never know it ,but buddy I'm a kind of poet.. So make it one for my baby and one more for the road..."

Orfeu entendeu o que até mesmo tentava esconder... Nos olhos fundos daquele homem ele mergulhou além da incompreensão da língua, o quanto nos falta um verdadeiro querer... Entrou pela noite com o desconhecido em gulosos goles de cerveja. Bambeando, cheirando à paixão ele colhe a flor mais pura da lapa... Mocinha Eurídice que fazia um bico de caixa em um cabaret dançante, orvalho selvagem, que paralisa a alma de Orfeu, corta o fôlego por alguns instantes até que ele consiga retomar o universo de grande macho sedutor, rei da lira e mulheres que seduz para em seguida desdenhar...

E com Eurídice não foi diferente... Passou-lhe a conversa ali mesmo no balcão em promessas de perfumes exóticos de lugares romanceados, folhetim barato da sua língua pobre e ardida... revirou aquele coração imaculado.Naquela manhã findo o trabalho, ela suspirava, "eu nasci pra sofrer... foi olhar pra você... quis gritar, quis fugir, mas você eu não sei por que você me chamou..."

Eurídice nem se importava com sua roupinha puída, seus sapatinhos gastos nas pedrinhas da Cinelândia, nos sonhos dispensados de suas horinhas de folga em filmes. Agora ela esperava, a noite e seu balcão, porque sabia que ele viria, e faria suspender as horas, parar o tempo durante o tempo em que olhasse em seus olhos, "ah,você está vendo só do jeito que eu fiquei... entre...não deixe o mundo mau lhe levar outra vez... me abrace simplesmente não fale,não lembre..."

Ela se entrega ao amor de Orfeu, durante aquela noite o viu dançar com tantas mulheres que quase nem acreditou que ao deixar seu trabalho, com o corpo cansado e os pés doloridos, se surpreenderia com a boca mais doce que provou... "Eu faço samba e amor até mais tarde e tenho muito sono de manhã..."

Ele jamais seria indivisível, entendeu na forma que calmamente Orfeu fazia o nó da gravata e lhe sorria já como se ela fosse uma lembrança distante... "Mesmo que os romances sejam falsos como o nosso, são bonitas, não importa são bonitas as canções..."

Eurídice abandonou seu emprego nesse dia. Desgostosa andou a vagar pela rua do Comércio, Buenos Aires, Praça Tiradentes, numa louca busca dos passos do seu dançarino... "Suas mãos,onde estão? Onde está o seu carinho,onde está você? Se eu pudesse buscar,se eu soubesse aonde está...seu amor...você..." .Por quantas mulheres ele havia passado? Em quais castelos ele estava? Quais camas e lençóis baratos ele dormia e acordava?

"As praias desertas continuam esperando por nós dois... a este encontro eu não devo faltar... agora eu sei que não posso faltar... porque tudo na vida há de ser sempre assim... tudo me diz não podes mais fingir..."

E assombrada, triste e esquecida em um desses dias que lentamente acabam ela se aproxima dessas mulheres de vermelho. Abre seu espelho e do fundo da bolsa retira o batom. Sua vaidade, o batom que estava à espera de Orfeu e agora marcará infinitos desconhecidos, vingança do abandono."Um dia há de chegar,quando ainda não sei...você vai procurar aonde eu estiver...". Decidiu esvaziar esse amor sendo de todos. Sendo de muitos. Desconsiderada e verdadeiramente honesta como toda puta.

E na ironia dessa história, ciranda de desespero, Eurídice nua nos braços do pracinha.Que não a deixa ir embora enternecendo um coração aprisionado e murmura enfeitiçado pela melancolia...

"Speak low... Darling, speak low... Love is a spark lost in the dark... the curtain descends, everything ends too soon... I wait... when you speak low to me... speak love to me..." Ela somente consegue fechar os olhos e imaginar que o calor que braseia seu corpo vem dos beijos de Orfeu... E aquelas palavras estrangeiras envenenam sua alma como o doce sussurrar do homem que a esqueceu.

Ela nem chega a perceber o quanto o pracinha se perdeu por ela. Já não queria mais ser a razão de ninguém, em cada esquina esperava encontrar Orfeu... Ele soube enfim, que ela era a puta mais concorrida da Gomes Freire, e lhe doeu e corroeu no orgulho porque suas promessas tinham sido verdadeiras.

Porém como todo homem ele as corrigiu pela manhã a deixando linda e petrificada flor estendida na cama, marcada pelas palavras."Ninguém precisa saber o que houve entre nós dois.." Ele era Orfeu, de todas as putas do mangue, jamais deixava seu amor na mesma cama duas vezes, sua avidez competia com dos outros malandros de branco e panamá, jamais iria existir outro amante da lira...

E num encontro fatídico, aquele que a vida lhe enchia todos os dias foi atingido pelo eterno looser, desajustado soldado. Nessa noite as rosas das encruzilhadas sangraram... O malandro não se desviou do seu destino, agonizante pediu por Eurídice, implorou um último beijo...

"Sim,deve haver o perdão para mim,senão nem sei qual será o meu fim...consegui o grande amor,mas eu não fui feliz..."

A busca chegava ao fim.

''Triste senhora... chora,disfarça e chora..o seu pranto vai molhar o deserto..." Ela retirou seu lenço, cobriu sua ferida em um gesto vazio, lentamente aproximou seu rosto. Orfeu das noites intermináveis, melódicas e sensuais, do mel derramado em sua boca inocente, homem dos cabelos de veludo, negros, escuros caminhos percorridos pelos seus dedos finos. Orfeu, doce Orfeu estendido em seus braços, que não dança mais...

E confessou que ele tinha conseguido com que ela desistisse de amar... Com os olhos fitos naquela que ele não teve coragem de se entregar, Orfeu libera sua alma ainda quente que se reparte nas encruzilhadas e no vagar da alma boêmia... Eurídice se levanta.Sem a esmola do beijo. Pede que acedam uma vela ao defunto e finge esquecer sua historia junto com o dia que sempre insiste em nascer...

"Morre mais um amor num coração vulgar deixa desilusão a quem não sabe amar... um verdadeiro amor nunca fenece... se o amor morrer é porque ninguém o entendeu ...deixa o teu coração viver em paz... o teu pecado é querer amar demais."


2 comentários:

Henrique Crespo disse...

Como num samba canção.

LNabuco disse...

É a beleza da tristeza como dizia nosso Poeta...E para fazer um samba de verdade é preciso um bocado de tristeza,amor e paixão.